A criança que fui, a mãe que sou
Você já se percebeu agindo “como criança” em alguma situação da vida adulta? Você já se pegou competindo com seu filho? Você já reparou como o choro da criança às vezes pode ser insuportável (mesmo que você não tenha coragem de admitir isso)? Você sabe que isso pode ser sua criança interior se manifestando? Pois é. Eu sabia, intelectualmente. Até que um dia decidi parar para ouvir o que ela tinha a me dizer de verdade.
Eu, quando criança, assim como provavelmente você, também passei por um deserto emocional, também experimentei abandonos, também sofri violências sutis ou nem tanto, verbais e físicas. E este criança ferida determinou minha forma de pensar, de sentir e de agir durante muitos anos. E, juntas, alimentamos muita raiva, muitos medos, muita ansiedade. Era a criança ferida expressando tragicamente sua necessidade de amor. Quando comecei a entender isso, um sentido, antes oculto, começou a se delinear. Mas saber intelectualmente é muito diferente de integrar em todo o corpo, na alma e no coração.
Foi então que, numa imersão de dez dias só com mulheres (para quem esta curiosa, foi “A arte de acompanhar o nascimento”, com a maravilhosa Naoli Vinaver – em breve, escrevo mais sobre isso), tive diversas oportunidades de mergulhar em mim e olhar para aquela menina que me habitava. E, quando consegui finalmente falar sobre ela e expressar toda a dor, toda raiva e todo medo, e ser acolhida sem julgamento e com compaixão… Quando finalmente me permiti sentir e legitimar estas dores antigas e profundas… Quando finalmente pude deixar o choro de muitas décadas sair das entranhas e lavar meu rosto e minha alma… Então, veio a transmutação e a integração da experiência.
Compreendi que esta criança ferida sempre vai existir em mim, porque eu realmente vivi o que ela traz em si e isso faz parte de minha história. Compreendi que, ao negar sua existência e não validar seus sentimentos e não querer nem olhá-la por medo de tocar nas feridas e sofrer ainda mais, apenas fez com que sua revolta crescesse e continuasse me dominando nos momentos de descuido e comandando boa parte de minha vida. Compreendi, verdadeiramente, que esta criança ferida precisa ser acolhida, aceita, respeitada e amada a cada vez que ela se manifesta – pois, se assim não for, ela continuará recebendo apenas o que recebeu na infância, só que agora de mim mesma, sem precisar que nenhum outro adulto faça isso, tão bem aprendida foi a lição de desamor.
Então, compreendi – e aceitei – que esta criança vai continuar aparecendo de vez em quando. E o que ela pede de mim é amor. E, quando ela aparecer, eu posso me permitir chorar e me acolher a mim mesma. Eu mesma posso validar seus – meus – sentimentos. Eu mesma posso me respeitar e me amar. E acolher todas as minhas partes, inclusive e sobretudo aquelas mais obscuras. Porque finalmente integrei em mim – e que bom que sempre há tempo para novas aprendizagens profundas e transformadoras, né? – que tudo aquilo que negamos em nós, cresce e nos domina de forma sutil e implacável. Porque o esforço que se faz para negar ou esconder faz com que nossa atenção se concentre nisso. E, já disseram muitos sábios, “onde está nosso foco, ali vai nossa energia”. Decidi parar de focar na dor: agora só foco no amor.
Porque, se eu quero romper o ciclo de violência e contribuir verdadeiramente para a co-criação de relações saudáveis com meus filhos, é preciso, antes de tudo, acabar com a violência, mesmo que sutil, contra mim mesma.
Cultivar uma relação de amor e respeito com minha própria criança interior aumenta as possibilidades de expansão do amor e do respeito genuínos pelas crianças em geral, principalmente daquelas que me escolheram como mãe. E seus choros passam a ser tão bem-vindos quanto seu riso, pois são simplesmente expressões de seu ser.
Todos os textos da sessão “Escrito à Mãe” do site cultivandocuidado.com bem como os textos do perfil no Instagram @cultivandocuidado são de autoria de Maristela Lima. Se estas reflexões fazem sentido para você, talvez elas sirvam também para suas amigas mães. Compartilhe com elas o link deste artigo e sempre cite a autoria. Assim, você valoriza e apoia o trabalho de uma mãe que escreve, contribuindo para que mais mulheres se beneficiem e me motivando para que eu continue a oferecer às mães conteúdos importantes, gratuitos e de qualidade.
Entre mães, precisamos no apoiar.
Com amor e gratidão,
Maris.