A mãe possível
A primeira vez que tive uma noite de sono de 8 horas contínuas, desde que meu filho nasceu, foi quando “fugi de casa”. Fiz uma viagem bate-e-volta e passei uma noite fora. Era a primeira vez que ele passaria a noite só com o pai. Surgiram inúmeras questões na minha mente, no meu coração, no meu corpo. Será que ele ia conseguir dormir? Será que “os meninos” iriam se virar? Será que meu peito ia vazar ainda, depois de mais de dois anos de amamentação? Será que ele ia pensar que eu o abandonei? E outras coisas que nem convém dizer aqui… Porque né, a gente vive essa simbiose toda do puerpério e depois, quando quer se lembrar quem é, fica meio perdida, meio culpada, meio em dúvida: será que eu sou eu, ainda?
É e não é. Eu continuo sendo, em essência, a Maristela. Mas, como nunca somos a mesma pessoa nem de um dia para o outro, pois que estamos em constante ser e vir a ser, quem dirá depois de um parto, um pós-parto super intenso e uma maternagem investigativa e que se quer cada vez mais transformadora…
“Temos, cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou deveríamos ser, e essa imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos a nós mesmos como realmente somos”. (J. Krishnamurti)
Quem é você? Você é a mãe de alguém? É assim que você se apresenta desde que seu filho nasceu? Quem era você antes do nascimento de seu filho? Quem é você hoje?
Fico impressionada com a quantidade de mulheres mães que vejo se apresentando como “a mãe de…” , como se apenas a maternidade as definisse – ou como se fosse isso que se esperasse delas… Pois é. Muitas vezes parece que as outras pessoas esperam que sejamos “a mãe de” e ponto. Não vêem a mulher por trás das olheiras de noites e noites mal-dormidas. Não vêem o ser humano que se redescobre humano pois que tem em sua mãos a vulnerabilidade de outra vida. Não. Muitas vezes, não nos enxergam, nós mães, nós mulheres, nós humanas. Não sabem tudo o que implica essa transformação que é gestar, parir, amamentar, amar… e não dormir. A maternidade é a prova da impermanência: vivemos em mudança constante – porque num momento os filhos estão tranquilos, no outro choram e esperneam aparentemente sem motivo, num dia adoram banana, no outro cospem tudo, num dia nem se viravam e de repente já estão correndo e revirando a casa. E em meio a tudo isso, a gente busca ter a melhor relação possível com eles, com aquela conexão especial, com presença de qualidade… Só com muito apoio, amor e persistência isso é possível.
Eu virei “a mãe do Gael” depois que meu filho nasceu. Por um tempo. Porque não sabia mais quem eu era. Porque meu chão desapareceu e tudo o que eu imaginava saber precisava ser reinventado a partir de um novo lugar, um novo olhar, um novo corpo, outro corpo se misturando ao meu, a memória se diluindo no leite materno, coisas antes importantes perdendo todo interesse e toda uma gama de sensações e novas urgências surgindo, todo um mundo a ser descoberto, sem mapas, sem bússolas, sem experiência prévia que ajudasse a explorá-lo – porque único em si.
Eu não sabia que minhas noites seriam tããão diferentes, por tanto tempo e tão continuamente. Por mais de dois anos, meu filho acordava no mínimo de duas em duas horas (no primeiro ano foi de hora e hora). Por mais de dois anos, todo meu organismo precisou se readaptar para sobreviver à privação de sono – e a outras privações.
Há duas semanas, Gael tem dormido continuamente de 6 a 7 horas por noite. Quase não acredito. Estou quase tão feliz quanto no momento logo após o parto. Estou mais leve, mais atenta, mais disposta. Estou conseguindo ter mais momentos em que me lembro realmente de mim.
Sim. O tempo e a experiência ajudam a superar desafios. Mas se não fosse o apoio que recebi para eu poder dormir e descansar em outros momentos do dia, não teria sobrevivido. Não com um mínimo de sanidade mental.
O desmame noturno – que no fundo eu (e meu companheiro) tanto temia – tem sido imensamente libertador. Tive um vislumbre disso quando dei aquela fugida de casa (os meninos sobreviveram, dormiram bem, sentiram saudades e me receberam com um sorriso – e um alívio, imagino – enorme). E eu me lembrei de como era bom ter tempo pra mim, dormir 8 horas direto, acordar tranquila, tomar meu chá na rede, ficar olhando o céu, sentir a brisa, fechar os olhos e ouvir os inúmeros passarinhos da Tijuca. Nossa! Voltei pra casa tão nutrida, tão renovada, tão mais inteira! Porque auto-cuidado é fundamental, né?
Eu sou mãe, mas isso não me define completamente. Isso é um dos meus papéis sociais atuais. Eu não sou só “a mãe do Gael”. Eu tenho toda uma história de vida antes de me tornar mãe. E tenho sonhos, desejos, planos para agora e para o futuro, para além da maternidade. Meu presente inclui meu filho e minha dedicação a ele. Mas meu melhor presente é quando me lembro de mim e apenas sou. Sem nada que me defina.
Eu não preciso ser a mãe perfeita. Eu sou a mãe possível. E confio que sou a melhor que posso ser neste momento e com as condições que tenho.
Eu apenas sou. Humana, igual a você.
“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância” (Simone de Beauvoir).
E você? Quem é você, além de “a mãe de…”?
Conta pra gente como tem sido seus processos de sono, amamentação, desmame. Quero ouvir suas histórias humanamente possíveis.
Abraços, com amor e gratidão.
Maristela
Todos os textos da sessão “Escrito à Mãe” do site cultivandocuidado.com bem como os textos do perfil no Instagram @cultivandocuidado são de autoria de Maristela Lima. Se estas reflexões fazem sentido para você, talvez elas sirvam também para suas amigas mães. Compartilhe com elas o link deste artigo e sempre cite a autoria. Assim, você valoriza e apoia o trabalho de uma mãe que escreve, contribuindo para que mais mulheres se beneficiem e me motivando para que eu continue a oferecer às mães conteúdos importantes, gratuitos e de qualidade. Entre mães, precisamos no apoiar.
Com amor e gratidão,
Maris.
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