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Cultivando o Cuidado – como nasceu

recém-nascido no colo da mãe

Gael no meu colo, logo após o parto em casa: occitocina pura.

Pari Gael em casa. Foram 9 meses e 5 dias de gestação. Sim, há quem diga que a gravidez dura 9 meses e uma eternidade. Para mim, a eternidade foram cinco dias. Cinco dias de contrações muito doloridas, que começavam a ritmar e paravam. E eu não dilatava. Só quem pariu conhece as dores e delícias desta escolha.


Começou numa tarde de sexta-feira. Caminhei uma volta completa no parque, voltei pra casa, namorei e aí começaram as contrações. Ficamos felizes. E chegou o sábado e nada. Domingo, eu exausta, as amigas em casa, fazendo carinho e comidinha, dançando junto, fazendo massagem. Meu companheiro, também exausto, ali, firme, forte, chão a me sustentar. Todo este apoio me fez persistir. Afinal, parir em casa tinha sido uma escolha consciente, planejada, desejada. Na segunda-feira eu nem falava mais, só apontava o copo d’água, a fruta, a cama, o chuveiro. As enfermeiras do grupo de parto domiciliar nos visitavam todo dia. Não havia o que fazer. O trabalho era meu. O corpo era meu. A história era minha. Era eu quem estava parindo, parindo meu filho, parindo a mãe em mim, perdoando meu passado, perdoando minha mãe, sentindo a dor de todas as mulheres e a minha ali, trabalhando o desapego, soltando, com medo, com coragem, com força, com garra, com espanto. Nossa senhora (e esta expressão cabe aqui), como somos guerreiras, mulheres! Sim, eu senhora de mim, descobri uma força que jamais imaginei me habitar! E persisti, até ter meu filho em meus braços, no início da tarde de uma terça-feira de sol, depois da virada da lua.

Lembro quando a enfermeira disse “olha a cabecinha, toca a cabecinha, Maristela”. E eu toquei e ria e chorava e nem acreditava. Logo depois ele veio. E eu continuava a rir e a chorar. O momento do parto é portal entre-mundos. Acho que não há nada mais belo e assombroso do que uma mulher parindo. E ser humano é isso: este espanto oscilante entre o instinto e o divino.

Tudo pode estar por um segundo. Passei a acreditar em milagres.

Meu filho estava ali, me olhava e sorria (e não venham me dizer que era espasmo no canto da boca! Não. Ele sorriu. Já leram Frédéric Leboyer? Pois é, meu filho nasceu sorrindo.) Ele estava ali sorrindo pra mim depois de cinco dias sofrendo as contrações, tão cansadinho quanto eu, tão por um triz quanto eu, tão feliz quanto eu, ríamos um para o outro. O amor venceu.

Sim, você pode dizer que sou uma mulher forte. Todas somos, embora tantos tentem nos convencer do contrário e muitas de nós acreditem que não. Somos fortes e nossa força está em nossa maior vulnerabilidade.

Sim, encontrei em mim esta força. E ao mesmo tempo sei que não foi apenas isso que me fez persistir: tive apoio, o tempo todo. E sabia o que eu queria. Pesquisei, planejei, estudei, conversei com outras mães, outras mulheres, outras gestantes, me preparei. (Sim, a gente se prepara sem saber exatamente pra que). E tinha uma única certeza: eu seria a protagonista do meu parto. Tinha acordos com meu companheiro: só iria sair para a maternidade se houvesse perigo de vida. A dor, bem, a dor existe e é inevitável. Com apoio, a gente sustenta. Com amor, a força se renova. Então, não seria pela dor que me tirariam de casa. Não tive nenhuma analgesia, nenhuma anestesia, sustentei a dor, como quem sustenta o olhar de uma criança: com a surpresa da descoberta do amor vivo, pulsante, imensurável.

Se eu tivesse menos apoio, não sei se persistiria. Se eu tivesse desistido e ido para a maternidade, certamente teria sofrido uma cesária. Se estivesse numa maternidade, meu filho teria sido certamente tirado de mim imediatamente para o oxigênio, exames, loucuras disfarçadas de cuidados.

Não, eu não tive sorte: tive escolha. E tive apoio. E tudo isso é graças a um longo processo de empoderamento e auto-conhecimento iniciado anos antes, muito antes da concepção. Processo no qual eu descobri que tudo são escolhas que fazemos. E que, para fazer escolhas que servem à vida e sustentá-las, é preciso companhia na caminhada, para lembrar do que realmente importa, para dar a mão na hora do cansaço, para o abraço que reabastece, para o olhar que me lembra que eu existo e estou viva.

Entender que soberania – ser a única senhora de mim – é uma necessidade vital, fez grande diferença neste meu caminho. Conectar-me às minhas reais necessidades e valorizá-las, buscar formas criativas de nutri-las, não deixá-las à mercê de relações abusivas de poder: isso tenho aprendido ao longo deste tempo. E isso se reflete em minhas escolhas de vida. E sustentou este parto em casa.

Assim nasceu Gael, há dois anos, três meses e três dias.

Já a mãe que hoje estou (sim, porque dizer “a mãe que sou” é negar-me às oscilações da impermanência da vida), ah, esta ainda está sendo criada e recriada a cada dia. E neste constante recriar-me, vejo a antiga identidade dissolvendo-se no leite materno que persisto em produzir.

Durante estes últimos dois anos, entrei a fundo no papel de mãe, sem saber bem como desempenhá-lo. Passei o tempo tentando descobrir, observando o que me fazia sentido nesta nova relação. Fiquei tão imersa nela que não havia mais espaço para antigas paixões. Eu, mãe. E eu, mulher? E eu, humana? E eu, ativa, com voz e vez?

Dizem que por volta dos dois anos a criança passa por um período de afirmar-se como ser único e separado da mãe, percebendo-se como indivíduo.

Acho que isso acontece também com a mãe. Aconteceu comigo, enfim: depois de dois anos de puerpério (sim, pode durar “tudo” isso), percebo (re)nova(da)mente minha individualidade, redescubro minha nova voz, recrio meus mundos, reinvento minha escrita.

E assim nasce este espaço de partilhas do que sou hoje.

Espaço para cultivar a companhia, o apoio mútuo, a sororidade.

Espaço para cultivar o cuidado, com a vida, com a vulnerabilidade da vida pulsante, com suas belezas e espantos.

Porque eu sou este instante fugaz em que a vida se faz.

Maristela Lima
29/08/2017 – 15h27


Todos os textos da sessão “Escrito à Mãe” do site cultivandocuidado.com bem como os textos do perfil no Instagram @cultivandocuidado são de autoria de Maristela Lima. Se estas reflexões fazem sentido para você, talvez elas sirvam também para suas amigas mães. Compartilhe com elas o link deste artigo e sempre cite a autoria. Assim, você valoriza o trabalho de uma mãe que escreve e apoia este trabalho, contribuindo para que mais mulheres se beneficiem e me motivando para que eu continue a oferecer às mães conteúdos importantes, gratuitos e de qualidade. Entre mães, precisamos no apoiar.
Com amor e gratidão,
Maris.


DICAS DE LEITURA (clique nos títulos para saber mais) :
Parto Ativo, de Janet Balaskas
Parto com amor, vários autores.
O Camponês e a Parteira, de Michel Odent
O corpo no trabalho de parto, de Eliane Bio
A maternidade e o encontro com a própria sombra, de Laura Gutman
Mulheres visíveis, mães invisíveis, de Laura Gutman
Comunicação Não-Violenta, de Marshall Rosenberg

This Post Has 8 Comments
  1. […] “Cultivando o Cuidado” nasceu junto com Gael. Ao me tornar mãe, percebi na pele, no ventre, no peito, o quanto nós, mulheres mães, precisamos de apoio para nutrir uma relação saudável com nossos filhos – e com nós mesmas. Senti a importância de estar junto a outras mulheres que vivem momentos semelhantes da vida: a gestação, o puerpério, a criação dos filhos. Descobri na prática que é fundamental estar bem-cuidada para conseguir bem-cuidar. E é assim que nasce o projeto “Cultivando o Cuidado” – do qual este blog faz parte, trazendo informação de qualidade, relatos pessoais inspiradores e dicas preciosas para uma convivência amorosa e transformadora. […]

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