A mãe da mãe
Este é o mês de aniversário da minha mãe. Esta mulher tão íntima, tão estranha, tão diferente de mim, tão minha igual. Mulher, humana. Durante muito tempo, a enxerguei apenas como “a mãe” e me relacionei com ela a partir deste rótulo, esperando que ela cumprisse bem o seu papel – seja lá o que isso significasse, mas havia um significado: ela “tinha que” fazer certas coisas, agir de determinada forma, falar de um determinado jeito, calar e aceitar. Acima de tudo, aceitar.
Sim, eu havia herdado esta mentalidade machista, patriarcal e desumanizante, sem nem perceber, sem nem questionar durante muito tempo. Afinal, mãe é mãe, certo? Não, pérai! Quanta dezumanização há neste rótulo! Eu não queria ouvir suas necessidades, não queria olhar para os sentimentos por trás de suas palavras, não queria compactuar com sua dor para não sentir a minha, a de todas as mulheres, a de toda a humanidade. Enxergá-la como um ser humano que também sente e que deseja apenas evitar o sofrimento e encontrar a alegria, envolve despir-me de tantas camadas de séculos de doutrinação em que a mulher mãe era ora santa, ora louca, ora puta, que o trabalho a ser feito em nossas mentes e corações leva tempo para transmutar toda dor em amor e coragem. Isso é algo que está ainda em construção, tamanho o estrago herdado por toda a linhagem de mulheres que sofreram mas que inclusive compactuaram, inconscientes, com o machismo e o patriarcalismo reinante.
Então, eu não a enxergava nem a ouvia. E achava que ela não me enxergava nem me ouvia. Ambas feridas, ambas distantes do próprio coração. Preferia culpá-la ou me culpar, num jogo trágico que nos desconectava cada vez mais. Foi só quando descobri a Comunicação Não-Violenta que comecei a me permitir olhar de frente estas dores. Foi só com muito apoio que consegui começar a olhar para ela sem ver nela apenas “a mãe” que tudo deve suportar. E passos curtos e mais lentos do que eu gostaria, me aproximo aos poucos do que gostaria para mim e para ela: uma relação entre iguais, uma conexão de coração.
Tornar-me mãe tem sido, muitas vezes, tornar-me pessoa. Para além do rótulo potencialmente dezumanizante, tornar-me mãe tem despertado e ativado meu cérebro empático. Acho que só comecei realmente a entender minha mãe depois que Gael nasceu. As noites em claro, a exaustão, o peito dolorido, o corpo em reconstrução, o humor enlouquecido, todas as mudanças que seguem ao parto me trouxeram para um outro lugar, onde eu podia enxergá-la de um outro ângulo, onde eu podia talvez me colocar no lugar dela e talvez entendê-la, talvez perdoá-la por ser menos que perfeita, talvez até amá-la como ela é. Ela, que tinha muito menos apoio do que eu tenho, muito menos condições do que eu tenho, muito menos (ou talvez nenhuma) validação de seus sentimentos e necessidades. Amá-la é também amar a mãe em mim, amar a mãe que eu estou construindo em mim, perdoar-me por ser menos que perfeita e me olhar e me ouvir a partir do coração.
Despindo-a de todo rótulo, vejo uma pessoa de 72 anos, cabelos grisalhos, muitas rugas na face, maõs trêmulas com dedos enrijecidos. Se eu olhar bem nos olhos talvez veja sonhos perdidos, desejos contidos, ilusões desfeitas, e apenas uma vontade de viver em paz o resto de seus dias.
Talvez enxergue sua humanidade. Talvez ouça o que seu coração calou durante tanto tempo.
E quanto dela há em mim? E quanto dela quero carregar ou não? E quanto desta imagem – idealizada, sacralizada ou sacrificada – de mãe há em mim? E a que isto está servindo? Isto me serve? Quem é a mãe que se faz em mim? Quero apenas o que me faz sentido, o que me faz sentir, o que me traz de volta à minha humanidade.
Despindo-me de todo rótulo, vejo uma mulher de 40 anos, alguns cabelos grisalhos, algumas rugas na face, dedos longos e rápidos sobre o teclado. Se eu olhar bem nos olhos do espelho, vejo sonhos, desejos, vontades, dores passadas, curas, conexões, transformações.
Vejo um pouco de mim em todas as mulheres. Vejo um pouco de todas as mulheres em mim. Eu nos reconheço.
Fico curiosa para saber de outras mulheres mães como a relação com a própria mãe (no passado ou no presente) reverbera em sua maternagem hoje. Quem se sentir à vontade, conta nos comentários. Agradeço, de coração! Histórias compartilhadas nos apoiam a enxergam que não somos as únicas a vivenciar o que vivenciamos. E a nos lembrar de nossa humanidade em comum. Estamos juntas. Vamos juntas. Abraços.
DICAS DE LEITURA (clique nos títulos para saber mais) :
Mulheres visíveis, mães invisíveis, de Laura Gutman
O poder do discurso materno, de Laura Gutman
Comunicação Não-Violenta, de Marshall Rosenberg
O Poder da Empatia, de Roman Krznaric
A coragem de ser imperfeito, de Brené Brown
Estou aqui degustando, digerindo e absorvendo esse texto lindo, profundo e tão revelador da mãe que sou e da mãe que tive, mas principalmente da mãe que quero ser e quero ter. Suas reflexões são libertárias, imensa gratidão por partilhar isso!
Fico muito feliz ao ler seu comentário, Pérola! Muito grata por me deixar saber que minhas reflexões tem contribuído para a sua vida! Abraço, com carinho…
Depois que me tornei mãe, há praticamente um ano, houve uma transformação que sinto que ainda não acabou… Ainda estou localizando qual meu lugar no mundo… Mas, com certeza depois de meses sem dormir direito vejo em minha mãe uma guerreira que teve três filhos e sempre trabalhou, só podia ficar conosco o tempo da licença maternidade, que na época era de três meses depois já tinha que voltar ao trabalho! Hoje eu posso decidir ficar dois, três anos sem trabalhar para cuidar do meu filho e nas noites mais difíceis me pergunto como minha mãe conseguiu passar por tudo isso trabalhando e ainda assim escolheu ter três filhos! Não é fácil pra mim e sei que também foi difícil pra ela mesmo tendo apoio do marido e das irmãs… E isso nos aproximou, nos colocou num lugar de empatia… ? Nossa relação ficou mais leve no sentido de ter menos julgamento após a minha maternidade!
Muito grata pelo seu depoimento, Cristina! Ser mae é um grande desafio mesmo. A gente só enxerga mais empaticamente a mãe depois de virar mãe, ne?
Depois de dois filhos, aprendi uma lição que considero muito valiosa aqui no meu contexto: tão lindo quanto ver nascer a mãe no trabalho de parto é perceber o florescer da mulher, em toda a sua força e beleza, quando o ciclo do filho, ao se tornar mais independente, permite que ela possa se redescobrir. Parabéns pra essas mulheres, mães, que se permitem se reinventar e enfrentam essa imensa transformação com todo o amor do universo.
Fiquei muito emocionada com suas palavras. Muito profundas e reflexivas. Gostaria de me aproximar da minha mãe, de conhecê-la, de ouvi-la, de poder falar o que eu tenho vontade.